sábado, agosto 27, 2005

Auto de fé

Durante a idade média, essa instituição iluminada que era a Santa Inquisição costumava submeter os hereges ao que chamava de "autos de fé", um ritual de penitência e humilhação pública que tinha como objectivo a redenção do penitente e o entretenimento da populaça. Normalmente, os hereges eram queimados vivos numa grande fogueira acendida numa praça pública, mas havia excepções. Aqueles que, após longas horas de tortura, confessavam "de livre e espontânea vontade" a sua heresia e se reconciliavam com a Igreja Católica Romana e os seus príncipes eram mortos por estrangulamento antes de se acender a fogueira. Pode parecer pouco, mas às vezes são os pequenos pormenores que fazem toda a diferença. Em Portugal, onde o centralismo não é coisa de agora, os "autos de fé" costumavam decorrer no Rossio, em Lisboa, mas o último de que há registo aconteceu há apenas dois dias, no 3º direito do nº 11 da Rua Nova do Almada, morada do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol.

Miguel, internacional português de futebol, foi "queimado" numa verdadeira fogueira de vaidades para diversão do povo. A cena passou nos jornais da noite das televisões e foi repetida até à náusea durante o dia de ontem. Para os menos atentos, podia ficar a impressão de se tratar de mais um daqueles videos mal iluminados, distribuídos por um grupo terrorista islâmico em que um prisioneiro de guerra é obrigado a ler uma confissão "pessoal e intransmissível" embora escrita por terceiros, admitindo crimes horríveis cometidos por si e pelos seus companheiros contra a fé, enquanto presta a devida homenagem ao "grande líder". Ninguém acredita nessas "confissões" lidas sem convicção, como ninguém acredita na "confissão" de Miguel. De resto, este "auto de fé" não humilhou apenas o jogador. Humilhou também os seus representantes legais que, no final de contas e depois de semanas a esgrimir argumentos a favor das pretensões do jogador, o levaram pela mão até à "fogueira", apenas para concretizarem o negócio, numa admissão inadmissível de que os fins justificam os meios. E humilha também o Benfica. Como dizia Winston Churchill, só os fracos confundem prepotência com grandeza.

Jorge Maia no Ojogo