domingo, julho 10, 2005

Ardor, dedicação e cifrões

Terminou ontem a primeira fase da campanha de venda de lugares anuais para o Estádio do Dragão, sob o lema "Um lugar marcado para uma grande família", e que tem o objectivo de cativar 35.000 adeptos.

No ofício que o director-geral da SAD enviou aos sócios já detentores de lugares anuais, incitando-os à renovação, há expressões quase poéticas ( "É graças à dedicação da família azul e branca que o Estádio do Dragão atinge níveis de encantamento tão elevados") e promessas de novas vantagens e atractivos. Não era preciso. Há muito que estamos condenados a amar o clube e não precisamos de ser convencidos. É fácil venderem-nos o que nós amamos, mas a gente da SAD consegue complicar. Aliás, está a fazer exactamente o contrário do que apregoa. Há um significativo grupo de adeptos (entre os quais me incluo) que ocupava um lugar central na bancada poente e a quem não foi permitida a renovação, mas imposta uma deslocação para um canto esconso, junto a um dos topos. A razão vem explicada num ofício " A UEFA exige sentar aí os seus convidados e patrocinadores". E note-se que esta parte vem logo a seguir a uma outra, onde se diz que "sem o fervor e a dedicação dos seus o palco perde magia e as jornadas de emoção ficam menos memoráveis". Pois…

É preciso dizê-lo trata-se de uma mentira. Uma mentira piedosa, mas uma mentira. Ou só seria vedado a esses adeptos o acesso aos seus lugares nos jogos da UEFA, como, de resto, aconteceu na época passada. Estamos mesmo a ver aquilo cheio de convidados da UEFA quando o F.C.Porto jogar com o Arrifanense para a Taça de Portugal, por exemplo. O que acontece é que aqueles lugares são demasiado bons para adeptos fiéis já que são ideais para serem cedidos a empresas patrocinadoras, No futebol-negócio dos nossos tempos, os adeptos de bancada são uma espécie em vias de extinção e têm cada vez mais um carácter folclórico e residual. Daí o desprezo com que são tratados pelos tecnocratas da SAD. A tal magia de que eles falam nos ofícios, só a vêem quando aparece estampada nos relatórios financeiros.

Uma grande família? Talvez, mas de gente cada vez mais afastada, ou não mandariam adeptos fiéis dormir para a cave enquanto os hóspedes suspeitos que aí vêm (uma malta que vai ao futebol como se fosse ao circo, ao cinema, ao teatro) se instalam no conforto dos nossos quartos.

É por estas e por outras que os adeptos não conseguem associar aos seus afectos à nova realidade das SAD. Na verdade, os burocratas que aí trabalham ainda não perceberam que esse negócio que lhes meteram nas mãos tem a especificidade extraordinária de ter nascido e crescido em redor de um símbolo. E que é mais, muito mais do que um bom negócio.

No dia em que só tiverem nas bancadas figurantes e clientes das empresas patrocinadoras, saberão que os adeptos, que vivem com a equipa uma unidade biónica, é que são o verdadeiro suporte do clube, o seu cimento afectivo. Talvez então concluam que, afinal, o futebol não é só indústria, como com certeza lhes ensinaram. Ainda há mais qualquer coisa para além disso e essa coisa, que eles agora desprezam, é que é a alma do tal negócio, a sua essência.

Falta, enfim, dizer que, como tantos outros, me decidi, magoado e ofendido, pelo abandono do lugar. Provavelmente, só lá voltarei em dias de jogo grande ou internacional, aqueles em que cheira a festa e o estádio está cheio de turistas, antropólogos, hereges e, claro, muitos convidados das empresas patrocinadores. Quando, numa noite tempestuosa de Inverno, o F.C.Porto jogar com o Penafiel ou o Estrela da Amadora, estarei, como tantos outros, em casa a ver o jogo no sofá para onde me empurraram os senhores da SAD. Esperamos pois ver nas bancadas os senhores convidados da Vodafone ou da Carlsberg a incentivar a equipa, para que não se perca a tal magia. Estamos todos a contar com o seu ardor e dedicação.

Álvaro Magalhães, escritor no JN