terça-feira, dezembro 14, 2004

BRAVÍSSIMO Miguel Sousa Tavares

Campeões no Mundo, suspeitos nos arredores

Como imaginam que nós, portistas, vemos e sentimos tudo isto? Esta inveja doentia, que os leva a desprezar o que deveria ser motivo de orgulho para todos os portugueses, que os leva, não a tentar imitar os feitos do FC Porto, mas sim a retirar-lhes importância, rodeá-los de eternas suspeitas e calúnias?

É sabido que a justiça é cega. Não fosse a justiça cega e seria incompreensível que, após um ano e meio de invocadas investigações policiais e do Ministério Público, se decidisse actuar contra o presidente do FC Porto exactamente nas vésperas de o clube viver os dias decisivos que lhe poderiam garantir a continuidade em prova e a defesa do título de campeão europeu e acrescentar-lhe o de campeão do Mundo de futebol.

Compreende-se, pois, que as gravíssimas suspeitas que recairão sobre o presidente do FC Porto, no esperançoso caso Apito Dourado - e traduzidas, designadamente, no pagamento por alguém estranho ao clube de umas meninas de alterne a uns árbitros, para que eles não se esquecessem de favorecer o FC Porto nos decisivos jogos contra a Académica, então último classificado, nas Antas (4-1), e contra o Beira-Mar, em Aveiro (0-0), bem como a oferta do relógio oficial dos 100 anos, no valor de 15 contos, ao major Valentim Loureiro, ou ainda um telefonema a Pinto de Sousa em que o presidente do FC Porto terá intercedido a favor de Deco e Mourinho, para que a Comissão Disciplinar da Liga suavizasse momentaneamente a sua tradicional e famosa senha antiportista - tudo isso, todos esses gravíssimos supostos indícios que, todavia, não justificaram mais que medidas mínimas de contrapartida à liberdade condicional do suspeito, não podia esperar nem mais uma semana para ser trazido à praça pública.

Imaginava-se que todo o showoff montado à roda da «detenção prévia para interrogatório» (essa curiosa e moderna figura processual que parece importada de uma qualquer ditadura africana) conduzisse, como conduziu, à imediata transformação do «suspeito » em criminoso - não só aos olhos de uma opinião pública desinformada mas também aos dos fazedores de opinião pública, ávidos por notícias destas.

Imaginava-se que tivesse o condão mágico de instantaneamente propiciar, como propiciou, o esperado discurso de «estão a ver, nós não dizíamos que só por causa dos árbitros é que o FC Porto tem dominado o futebol português nos últimos 20 anos?».

(Sim, porque alguma vez o FC Porto de Mourinho, o FC Porto do ano em que ganhou o campeonato com 12 pontos de avanço, a Taça de Portugal e a Supertaça e ainda a Taça UEFA, seria capaz de vencer a Académica nas Antas ou empatar com o Beira-Mar em Aveiro sem pôr antes umas meninas a distrair os árbitros?)

Imaginava-se ainda que, com um tiro no almirante, toda a esquadra se afundaria e o país futebolístico não teria de passar pelo horror de ver um clube português vencer o invencível Chelsea, ultrapassar a fase de grupos da Liga dos Campeões, acumular mais pontos a favor dos demais clubes portugueses no ranking das competições europeias e ainda, supremo desplante, trazer do Japão, e pela segunda vez, o título de campeão do Mundo.

Imaginava-se mas, aqui, as expectativas saíram traídas. Passado o primeiro momento de choque, que ainda poderá ter ajudado à derrota caseira contra o Beira-Mar, o FC Porto demonstrou que os grandes clubes são mais que apenas um presidente, por melhor que ele seja: são adeptos, treinadores, dirigentes, jogadores, uma mística, uma vontade, uma crença, uma capacidade de resistência à adversidade, em todas as situações e em todos os cenários.

O FC Porto resistiu às coincidências temporais do Apito Dourado, resistiu em silêncio às calúnias, difamações e falsificações históricas grosseiras que os arautos dos medíocres de imediato atearam, resistiu ao cansaço, aos fusos horários, a um adversário em campo que só jogou para o 0-0, aos golos mal anulados, à profusão de bolas na trave, resistiu a tudo e trouxe de Yokohama a tão merecida e tão desejada Taça Intercontinental, fazendo do FC Porto um dos membros do selectíssimo clube dos 10 que mais títulos internacionais conquistaram em toda a história do futebol mundial.

Contra o desprezo e maledicência da própria pátria, são hoje campeões da Europa e campeões do Mundo.

Haverá alguma outra coisa, desportiva ou não desportiva, em que Portugal se possa orgulhar de ter obtido o título de melhor do Mundo?

Aparentemente o mundo não chega aqui, aos arredores portugueses.

Lembro o Presidente Jorge Sampaio, que correu a condecorar o presidente da Federação, o seleccionador nacional e toda a Selecção que, em condições extremamente favoráveis, foi vice campeã da Europa mas esqueceu-se de condecorar o FC Porto, que por si só, sem ajudas nacionais, fora campeão europeu, dois meses antes.

Lembro a primeira página dos nossos três jornais desportivos neste sábado, totalmente ocupados com o palpitante Sporting-Braga dessa noite, remetendo o jogo do FC Porto em Yokohama, da manhã seguinte, para um rodapé de página.

Lembro a mesma imprensa de domingo, com as manchetes ocupadas com as incidências do Sporting-Braga ou a magna questão de saber se o Benfica jogaria contra o Belenenses com ou sem o Sokota de início e o FC Porto de novo remetido para uma notinha cá em baixo, a par... do Boavista.

E lembro, porque não consigo calá-lo, a histórica e tristíssima edição de ontem deste jornal em que escrevo, em que o desastre do Benfica no Restelo ocupava 75 por cento da primeira página e o êxito do FC Porto não ocupava mais de 15 por cento, de novo cá nos baixios da página e sem ao menos ter a menção - detalhe - de que tinha conquistado o título de... campeão do Mundo! Enfim, lembro os telejornais de domingo da TVI e da SIC, que abriram, não com a notícia da vitória do FC Porto no Japão,
mas sim com a notícia de uma ameaça de bomba no Real Madrid-Real Sociedad...

Faço uma pergunta a sério aos leitores de outras cores que não as minhas: como imaginam que nós, portistas, vemos e sentimos tudo isto?

Esta inveja doentia, que os leva a desprezar o que deveria ser motivo de orgulho para todos os portugueses, que os leva, não a tentar imitar os feitos do FC Porto, mas sim a retirar-lhes importância, rodeá-los de eternas suspeitas e calúnias?

Se somos campeões europeus é preciso desconfiar de um Porto-Académica de há dois anos atrás; se somos campeões do Mundo é preciso desconfiar de um Sporting-Braga em que o árbitro auxiliar anulou um golo ao Sporting por offside (embora tenha também cortado uma jogada de golo ao Braga, em situação idêntica, mas isso claro que não interessa).

Imaginem por um instante que o Benfica ou o Sporting tinham ganho na véspera um título mundial de clubes: acham que algum jornal desportivo português daria ao facto quase tanto destaque na primeira página como aos protestos de Pinto da Costa por ter sido mal anulado um golo ao Porto, contra o Braga, dois dias antes?

O que nos dói, como portistas e como portugueses, é olhar para a imprensa desportiva internacional, no dia seguinte à vitória do FC Porto sobre o milionário e inacessível Chelsea, e constatar que o que os ocupa são as notícias, retransmitidas da imprensa portuguesa, sobre a «prisão» por «corrupção» do presidente do FC Porto e por causa de suspeitas levantadas a propósito de jogos contra a Académica e o Beira-Mar- nós, que levámos de vencida, até ao título europeu, Chelsea, Arsenal e Manchester, Real Madrid, Barcelona, Corunha e Valência, Juventus, Inter e Milan, Bayern, Schalke, Ajax e Galatasaray, enfim, tantos e tantos milionários do futebol europeu, que dificilmente perdoaram a afronta cometida por um clube desse país periférico que é Portugal.

P. S. 1- Luís Filipe Vieira diz que em breve vai fazer muitas mais revelações, para acrescentar aos capítulos do Apito Dourado. Sendo certo que nada, obviamente, dirá sobre a anedota da arbitragem do ano - que foi aquele penalty a favor do Karadas e que valeu dois pontos contra o Estoril-, ele deveria explicar o que faziam dois jogadores do Benfica, que não participavam no jogo e não podiam ali estar, no túnel de acesso à cabine da filial estorilense, discutindo com dois adversários, durante o intervalo do jogo. E, em particular, deveria talvez explicar o que quererá ter dito o Petit ao seu ex-colega do Boavista Paulo Sousa quando ao intervalo lhe reclamou que «não complicasse» as coisas. Sim, o que quereria ele dizer com isso? Também parece que houve algumas cenas menos próprias, no final do Sporting-Braga, no tal túnel de Alvalade, onde o Sporting diz ter câmaras de filmar montadas. Seria possível vermos o filme ou o único túnel suspeito é o do Dragão?

P. S. 2 - Interrogado no final do Porto-Chelsea sobre o envolvimento de Pinto da Costa no Apito Dourado, José Mourinho limitou-se a dizer que seguia a coisa à distância, como se isso lhe fosse totalmente alheio. Fez mal. Primeiro porque o presidente do FC Porto era ainda o seu patrão há poucos meses atrás e, embora o clube muito deva a Mourinho, ele também deve a Pinto da Costa e ao clube a sua rápida projecção internacional. Segundo porque, a fazer fé nas notícias, o que está em causa são suspeitas que recaem sobre jogos do Porto quando Mourinho era o seu treinador. Ou seja, o que o país futebolístico faz por acreditar é que não foi graças à organização do clube, à gestão de Pinto da Costa, à categoria de Mourinho ou à classe dos jogadores que o FC Porto registou os êxitos dos últimos anos: tudo terá sido devido a umas meninas de alterne, intermediadas por um empresário de Avintes e a favor de uns árbitros do Alentejo. José Mourinho não se sentirá atingido também?