terça-feira, setembro 14, 2004

Miguel Sousa Tavares

Um pouco mais de futebol, s. f. f.

Ainda agora se começou e já se joga para os pontos, sem qualquer preocupação pela qualidade do espectáculo, e com as justificações habituais: pouco tempo de treino, início de época, integração de jogadores novos, assimilação dos métodos dos novos treinadores ou até a necessidade de começar já a poupar energias para o resto da época.


REGRESSOU enfim o futebol de competição e regressou em fraqueza. Ainda agora se começou e já se joga para os pontos, semqualquer preocupação pela qualidade do espectáculo, e com as justificações habituais: pouco tempo de treino, início de época, integração de jogadores novos, assimilação dos métodos dos novos treinadores ou até a necessidade de começar já a poupar energias para o resto da época. Confesso que já tenho saudades de ver um bom jogo de futebol, bem jogado do princípio ao fim. Repare-se na Selecção: arrastou- se na Letónia, durante mais de uma hora, para, subitamente e inspirada por uma stripper espontânea e dois rasgos de Cristiano, resolver num minuto o que aquele futebol de sucessivos passes entre os defesas e os médios, sem qualquer agressividade ou objectivo aparente, não parecia capaz de resolver. Recebemos a Estónia e até a 13 minutos do fim,mostrámos um futebol capaz de curar as insónias do doente mais persistente – excepção feita a dois momentos em que a Estónia esteve na iminência de conseguir um escandaloso golo na baliza de um Ricardo eternamente aos papéis de cada vez que a bola é jogada na pequena área.Mas eis que o Deco cruza a preceito, o Cristiano eleva-se como mandam os manuais do ponta-de-lança e, de repente, foi como se uma torneira de segurança se tivesse aberto: 4-0,um resultado em que ninguém teria apostado a um quarto de hora do fim. Começo a admirar sinceramente este Luiz Felipe Scolari: o homem não só é um dos melhores profissionais de marketing que eu já vi actuar, como é também um dos sujeitos com mais sorte que eu conheci até hoje – a seguir, talvez, ao Pedro Santana Lopes.

Repare-se agora no FCPorto, orgulho e raça da nação, campeão nacional e europeu, maior vendedor de estrelas de todo o defeso.Em todos os jogos «a sério» que disputou até agora, amigáveis ou oficiais, ficou- se sempre por um golo marcado: contra o Arsenal (vitória), o Galatasaray (derrota), o Boavista (empate), o Benfica (vitória), o Valência (derrota) e o Braga (empate). Com um ataque com o Quaresma, o Maciel, o Derlei, o McCarthy, o Postiga, o Hugo Almeida (o César Peixoto não, esse é umtremendo erro de casting), este ataque não consegue marcar mais do que um golo por jogo? E aquele meio-campo de luxo, com o Carlos Alberto, o Costinha, o Diego e o Maniche (O Hugo Leal não, é outro erro de casting), como não consegue ele lançar um ataque em condições, segurar o jogo, manter a posse de bola, ao ponto de a «táctica de jogo estar reduzida à forma mais simples: pontapé do Baía directamente por cima da defesa e do meio campo a lançar o ataque? É preciso recuar aos deprimentes tempos do Octávio para lembrar uma equipa do FC Porto tão falha de ideias, de inspiração, de espírito de conquista. É facto que se perdeu um mês decisivo com esse outro erro de casting que foi o Del Neri, e é facto também que Victor Fernandez ainda não conseguiu ter, cinco dias que fosse, o onze principal todo junto para ensaiar com ele o que quer que seja. A tendência, fatalmente, só pode ser para melhorar e muito estranho seria que jogadores como um Seitaridis, um Carlos Alberto, um McCarthy ou um Diego não conseguissem desmentir rapidamente esta frustrante imagem de banalidade que têm mostrado. Espera- se ainda a estreia de Luis Fabiano e um rápido regresso de Derlei, não apenas em boas condições físicas, mas também na posse da plenitude das suas qualidades futebolísticas que, desde o malfadado jogo de Alverca, nunca mais se viram verdadeiramente. Quem sabe, talvez já esta noite, no regresso oficial ao Dragão e no primeiro e fundamental jogo de defesa do título europeu, o FC Porto possa dar uma amostra de reencontro com o espírito da equipa que deu cartas no futebol europeu dos últimos dois anos. Uma entrada com o pé esquerdo na Liga dos Campeões poderia ter efeitos psicológicos graves e comprometedores para toda a época.

Entretanto, a sua estreia no campeonato ficou marcada por aquela exibição de fraqueza e abulia em Braga. Tornou-se demasia- do evidente que a equipa passou a jogar para o 1-0, logo que aos 3 minutos o génio de Maniche a colocou de imediato em avanço. Todavia, mesmo jogando mais do que o FC Porto, pareceu-me a mim que o Braga não chegaria por si só ao empate, não fosse, uma vez mais, a alergia de Pedro Proença ao azul e branco. Notável a forma incisiva como ele conseguiu ver de imediato a falta do Quaresma sobre o Wender, que nenhuma imagem televisiva conseguiu esclarecer claramente, e como ele conseguiu ver que a falta, a existir, tinha acontecido dentro da área – quando todas as imagens vistas mostram o Wender sobre o risco da área.Mas mais fantástico ainda foi o facto de ele, que tão peremptoriamente tinha assinalado um penalty tão duvidoso contra o FC Porto, dez minutos depois não ter sido capaz de ver um penalty tão evidente contra o Braga. Dizia o jornalista de «A Bola» que talvez ele não tenha visto, mas as repetições televisivas mostram claramente Pedro Proença a não mais que três metros do lance e, sem ninguém no meio, a ver o jogador do Braga, de frente para ele, a meter descaradamente a mão à bola. Pelo que, dúvidas não há: o árbitro viu o penalty.A questão resume- se, assim, a saber porquê que não o marcou – porque não gosta de marcar dois penalties no mesmo jogo, porque achou que oPorto não merecia ganhar daquela maneira, porque é devoto do Bom Jesus de Braga? Nestas coisas, eu acho sempre que uma equipa não tem grande legitimidade para se queixar das decisões dos árbitros quando não justificou no jogo outro resultado que não o que obteve – como foi o caso do FC Porto em Braga. Mas a verdade é que há por aí muita gente que defende o contrário, que chega ao fim da época e apesar de a sua equipa nunca ter mostrado merecimento para tal, vem declarar solenemente que, não fossem x pontos «roubados» pelos árbitros e teriam sido campeões.Assim, e para a contabilidade pessoal do dr. Dias da Cunha, deve ficar desde já registado que, na primeira jornada do campeonato, o «sistema» tirou ao FC Porto dois pontos em Braga.

Quanto aos rivais, o Sporting confirmou a sua tendência para a inconstância das exibições e dos resultados, diminuindo-se estranhamente longe de Alvalade.Falta-lhe uma continuidade de autoconfiança (gritante na forma como cedeu o 2.º lugar ao Benfica, no final da época passada) e que a categoria de alguns dos seus jogadores torna difícil de entender.Desmentindo a minha própria previsão de pré-época, o Benfica, por seu lado, vai revelando que não passa de uma equipa banal, eventualmente esforçada, mas não mais do que isso. Leva duas vitórias em outros tantos jogos – o que deve ser motivo de inesperado júbilo por aquelas bandas – mas nem empurrada por todos os carrinhos de mão disponíveis consegue disfarçar a sua absoluta impotência na hora da verdade, para tanto bastando que lhe saia ao caminho um simples Anderlecht. Bem, e o Boavista continua igual a si mesmo e igual à descrição que dele aqui fiz há umas semanas: joga para marcarumgolito fortuito e defendê- lo como se estivesse a defender a virgindade de uma princesa prometida, com muita pancada, muito antijogo, muitas lesões simuladas, muitas perdas de tempo, faltas constantes e sucessivas (74, segundo a contagem televisiva no jogo contra o Gil Vicente!), e uma arte única de conseguir enervar os adversários ao ponto de os pôr a jogar igual. Por mais que me esforce, não consigo perceber como é que há adeptos disponíveis para apoiar este futebol.

Enfim, talvez eu seja mais exigente ou mais pessimista que o comum dos outros. Vejo por aí gente quase exultante com «as primeiras indicações» do campeonato ou as primeiras prestações da Selecção na qualificação para o Mundial da Alemanha. Eu bem sei que, quando o Benfica vai à frente, nem que seja nos primeiros fogachos, o «país futebolístico » anda mais contente e satisfeito, e, se ainda por cima a Selecção cumpre os mínimos exigíveis no grupo de qualificação mais fácil de que há memória para algum candidato a uma fase final de um Mundial, então a felicidade é dupla. Contentamo- nos com pouco? Depende daquilo a que cada um está habituado.