terça-feira, junho 29, 2004

Fábrica de heróis - Miguel Sousa Tavares

Para as meias-finais são favoritos os que tiveram mais dias para descansar, os que disputaram os seus cinco jogos em período mais dilatado de tempo, os que tiveram menos jogos no horário violento das cinco da tarde, os que estão mais habituados a este calor demolidor, os que tiveram uma época menos carregada para os seus principais jogadores. São favoritos, portanto, Portugal e Grécia .



1- Nada melhor que uma grande montra internacional, como um Europeu de futebol, para fabricar instantaneamente heróis e proporcionar negócios de estarrecer. Bastaram quatro golos ao inglês Rooney para ser transformado no novo herói das ilhas Britânicas e levar o seu clube, o Everton, a estimar em 75 milhões de euros o seu valor transaccionável: 18,75 milhões por cada golo marcado. Entre nós o delírio das transacções fantásticas também é uma constante: ainda o Euro não tinha começado e já nada menos que quatro jogadores do Benfica eram dados como prováveis no Real Madrid de Camacho: Miguel, Tiago, Luisão, Petit. Nuno Gomes—que deve apenas a dois golos marcados num outro Europeu a sua transferência milionária para Itália — vê agora, e graças ao seu inspirado golo contra a Espanha, a sua renovação contratual transformada em prioridade para os lados da Luz, não venha novo tubarão europeu querer raptá-lo novamente.

Quanto ao último herói em data — Ricardo, guarda-redes do Sporting e da Selecção— , já se podem ler textos onde se perspectivam as mais-valias que o Sporting vai fazer com a sua venda, assim que termine o Europeu, e onde se tecem elogios à capacidade de antecipação do negócio de que deu provas, um ano atrás, a SAD do Sporting. Deixo aqui uma aposta pessoal: nenhum destes se vai transferir para o estrangeiro, a não ser que muito baratinho.

Já quanto aos portistas ao serviço da Selecção, infelizmente não posso apostar o mesmo. O mercado não é parvo, não nada em dinheiro para deitar fora e nem sempre se deixa ir atrás de impressões fugazes ou dos desejos dos empresários colocadores de notícias. O verdadeiro núcleo de jogadores portugueses que interessam ao mercado é aquele que foi campeão da Europa de clubes e que entrou em cena depois do Portugal-Grécia para transformar uma Selecção vencida numa equipa de vencedores. Porque será?

2- A passagem do Ricardo a herói nacional é, objectivamente, um acto de voluntarismo da imprensa. É certo que, no meio daquele drama sempre psicologicamente demolidor que é o desempate por penalties, a sua prestação teve um tom de verdadeiro drama e glória que, tendo sido o último acto de um espectáculo tenso e intenso de duas horas, ficou para sempre condenada a passar à história. O acto de descalçar as luvas para tentar a defesa decisiva e, logo de seguida, aproveitar o estado de transe para cobrar ele o último penalty foi do melhor, em termos dramáticos, que se pode servir a uma multidão.

E, como as últimas impressões é que ficam, tudo o resto ficou apagado. O quê, ao certo? De positivo, duas boas defesas, uma saindo a pontapé fora da área, outra mergulhando em voo para um remate frontal. De negativo, a falta de reflexos para conseguir emendar a fífia do Costinha aos três minutos de jogo (o remate de Owen é espontâneo e bem executado mas saiu fraco e à figura) e duas bolas cabeceadas livremente na sua zona de interdição aérea, uma das quais esbarrou na trave e viu a recarga vitoriosa felizmente anulada pelo árbitro. Até que se chegou aos penalties e, depois de Beckham ter escorregado no primeiro, os três seguintes entraram pelo meio da baliza, enquanto Ricardo se atirava sistematicamente para a sua esquerda.

E estávamos nisto quando Eusébio, desesperado, correu ao longo da lateral para, como ele contaria depois, ir suplicar a Ricardo que não se mexesse antes de ver para onde ia a bola — pois que, como lhe ensinara Lev Yashine há muitos anos, essa é a única hipótese que um guarda-redes tem de defender um penalty sem ser por sorte. Mas a verdade é que, felizmente para Portugal, Ricardo não escutou o conselho de Eusébio nem quis saber da lição de Yashine. E, pela quarta vez consecutiva, atirou-se para o mesmo lado e teve a sorte de ver o seu adversário inglês fazer-lhe finalmente a vontade e atirar para lá a bola.

Depois, veio aquele gesto iluminado de mandar afastar o Nuno Valente e encarregar-se ele próprio de cobrar o nosso penalty. Ora a sua cobrança (tirando a do Rui Costa, que saiu por alto) foi a pior entre as seis cobranças de Portugal. Porque há quatro regras, por ordem de importância decrescente, para cobrar bem um penalty: 1.ª, enganar o guarda-redes; 2.ª, rematar rasteiro e nunca por alto; 3.ª, colocar a bola o mais desviada possível do centro; 4.ª, rematar com força.

Rarissimamente se conseguem reunir as quatro no mesmo remate mas isso não é importante desde que a primeira delas seja assegurada: um guarda-redes desequilibrado para o lado contrário àquele em que se envia a bola jamais conseguirá ir buscá-la. O Ricardo conseguiu as últimas três condições de êxito mas não a primeira, o que, com um guarda-redes tão comprido como o James, seria normalmente fatal, se a bola não tem saído, de facto, tão colocada. Um palmo mais para dentro e a esta hora já não haveria herói Ricardo e, se porventura a Inglaterra tem ganho a seguir o desempate, toda a gente estaria agora a condenar a sobranceria do Ricardo, que nos teria custado a eliminação. Eis quão frágil é a fronteira entre os heróis e os vilões.

A heroicização do Ricardo teve, como contrapartida inevitável, o esquecimento dos méritos de outros. Poderíamos falar, desde logo, do Maniche, que encheu o campo com uma exibição imensa, culminada com uma cobrança exemplar do penalty que lhe coube. Ou do Hélder Postiga, que em 10 minutos revolucionou o ataque português, nos levou à igualdade e nos devolveu a esperança e que cobrou o seu penalty com um número circense daqueles que ficam para sempre na memória, pela classe e calma com que foi executado. Mas o herói escolhido foi o Ricardo. Porque são as últimas impressões que contam e também por outras razões que na hora de unicidade nacional não convém que sejam especificadas.

3- Há uns meses atrás escrevi aqui que o Europeu era uma competição que não me entusiasmava muito, pois que raramente era bem jogado, fruto do cansaço de final de época que revelavam os melhores jogadores das melhores equipas, o que fazia, aliás, com que o estatuto de favorito fosse mais institucional que real. O próprio Mundial é, a meu ver, uma competição sempre ligeiramente falseada pela vantagem que sul-americanos têm em relação aos europeus, fruto das diferentes épocas em que a competição aparece dos dois lados do Atlântico. Se brasileiros e argentinos aparecem sempre como candidatos à vitória é sem dúvida porque ambos os países são verdadeiras fábricas de grandes jogadores, em produção industrial, mas também porque as suas selecções aparecem sempre nos Mundiais em muito melhores condições físicas e anímicas que as selecções europeias.

Este Europeu — que eu confesso que, apesar disso, me tem surpreendido por uma qualidade superior à que esperava — não foge, todavia, à regra. Vimos selecções como a francesa, a italiana, a inglesa, a alemã, a espanhola, positivamente nos limites. Vimos as vedetas multinacionais do Real Madrid — Zidane, Beckham, Raul, o próprio Figo — fazerem das tripas coração, algumas já de arrasto. À medida que o campeonato avança para o fim, e os jogos nas pernas se acumulam, este vai ser o factor decisivo. Para as meias-finais são favoritos os que tiveram mais dias para descansar, os que disputaram os seus cinco jogos em período mais dilatado de tempo, os que tiveram menos jogos no horário violento das cinco da tarde, os que estão mais habituados a este calor demolidor, os que tiveram uma época menos carregada para os seus principais jogadores. Os favoritos são-no pelas circunstâncias da prova e não por estatuto predeterminado. São favoritos, portanto, Portugal e Grécia.

P. S. — E, por falar em circunstâncias, e se outras de última hora não ocorrerem, no próximo domingo, à hora em que se disputa a final do Europeu, estarei fechado e longe de tudo a bordo de um avião com destino ao Brasil. Porque se trata de trabalho e não de férias e tenho coisas com hora marcada à minha espera, nada há que possa fazer contra as circunstâncias. Só me resta conformar-me com ser um dos raros portugueses que não só não vão assistir, nem sequer pela televisão, à final do Europeu disputado em Portugal, e onde temos a hipótese, que julgo inédita, de sermos na mesma época campeões da Europa de clubes e de selecções, como também estar ausente num momento em que o meu país surge ameaçado por uma catástrofe política sem precedentes na sua história.

Assim, com toda a probabilidade, terça-feira não estarei aqui, nesta coluna. E aviso-o desde já para evitar outras interpretações de gente que por aí há.