quarta-feira, dezembro 29, 2004

Miguel Sousa Tavares I

-Uma semana atrás...

O rio Douro e o outro Rio

Ocorre-me pensar o que teria conseguido o FC Porto, nestes últimos três anos, se tem sido mandado a partir do governo ou da câmara do Porto. Se tivesse apostado tudo na participação em sessões partidárias do PSD, em entrevistas pedidas aos ministros ou em favores esperados da câmara

SE não tiver mudado de ideias à última hora, invocando «dificuldades de agenda», o primeiro-ministro Santana Lopes terá estado ontem ao fim da tarde no Porto, a condecorar o FC Porto pela sua recente conquista do título de campeão mundial de clubes.

É um acto de simples justiça que, julgo, ninguém se atreverá a contestar. Mas é também, obviamente, um acto de gestão política—matéria em que Santana Lopes é especialista. Por um lado, ao condecorar o FC Porto, ele antecipa-se e marca pontos relativamente a Jorge Sampaio — sempre tão pronto a condecorar e comover-se com supostos feitos desportivos mas a quem, estranhamente, as conquistas da Taça UEFA, dos títulos europeu e mundial, por parte do FC Porto, não mereceram um sorriso nem uma lágrima de comoção ou de orgulho patriótico. Por outro lado, e com eleições à vista, Santana Lopes tenta, comeste gesto, minimizar os estragos causados pela persistente guerra movida ao FC Porto pelo autoproclamado número 2 do partido e presidente da câmara do Porto, Rui Rio.

Rio, é claro, não terá estado presente nem se atreverá a abrir a boca para criticar este gesto do número 1: ele sabe também que há interesses eleitorais que, circunstancialmente, fazem remeter a um prudente silêncio mesmo alguém, como ele, que gosta de cultivar a imagem de um político diferente.

Rui Rio, também auto-designado campeão da luta contra a promiscuidade entre política e futebol, não é, aliás, virgem em matéria de silêncios convenientes.

De facto, só por má-fé ou má memória é que, volta e meia, aparece alguém a querer lembrar que Pinto da Costa desafiou Rio na pugna eleitoral do Porto e perdeu.

Basta consultar os jornais da época para constatar que não é verdade: ninguém desafiou ninguém.

Quanto a Pinto da Costa, limitou-se, por inércia, hábito e gratidão a um portista que sempre reconheceu o prestígio dado pelo clube à cidade, a apoiar nominalmente a impossível ressurreição autárquica de Fernando Gomes.

Já quanto a Rui Rio, limitou-se a deixar correr as coisas, evitando tudo o que pudesse alienar votos e, especialmente, evitando cuidadosamente insinuar o que quer que fosse que permitisse aos eleitores adivinhar o que viria a ser, depois, a sua sanha patológica contra o FC Porto.

Convém recordá-lo: foi só depois de se ter visto sentado no cadeirão da câmara que Rui Rio partiu em guerra contra o clube que, no dizer de Vítor Baía e no sentimento geral, se confunde quase com a cidade. Se o tem feito antes, durante a campanha eleitoral, teria revelado coragem e ninguém teria tido legitimidade para questionar a sinceridade das suas convicções na matéria. Só que teria também perdido a eleição. Porque o sabia, ele ficou calado. E, tendo ficado calado, transformou em oportunismo o que deveria ter sido coragem.

Agora, à boleia do Apito Dourado e sentindo o adversário fragilizado, Rui Rio achou que o momento era adequado para voltar à carga, antecipando-se mesmo a qualquer conclusão ou até acusação judicial, passando desde logo a incluir Pinto da Costa no rol dos criminosos do futebol, como Tapie ou Gil y Gil. Mas, assim que levou com a resposta de Pinto da Costa e onde mais lhe dói—a ameaça de o enfrentar a sério nas próximas autárquicas —, tratou logo de meter a viola ao saco. Fala quando se imagina forte, cala-se quando lhe parece prudente. É a tal forma diferente de estar na política.

De facto, a prudência mais que aconselha o presidente da câmara do Porto a estar calado. Em primeiro lugar porque o Apito Dourado ainda vai dar muito que falar e muito que rir: e talvez ria melhor quem rir no fim.
Em segundo lugar porque o dito apito começou, como todos se lembram, com suspeitas sobre o major Valentim Loureiro, e suspeitas essas que ultrapassam o âmbito meramente desportivo e remetem directamente para a tal promiscuidade entre política e futebol que ele (e eu) execra. E o major Valentim Loureiro, ao contrário de Pinto da Costa, nunca entrou no rol das figuras do futebol de quem Rui Rio achava higiénico manter-se afastado.

Pelo contrário, foram ambos e simultaneamente dirigentes do PSD, foram ambos e simultaneamente frequentadores do camarote de honra do Estádio do Bessa e foi graças ao apoio de Rio que Valentim ganhou a Junta Metropolitana do Porto. Sobra ainda o facto relevante de à roda das intenções do Boavista relativamente à urbanização dos terrenos do Bessa e às acessibilidades do próprio estádio se levantarem algumas dúvidas pertinentes e algumas notícias preocupantes que, a confirmarem-se, farão das supostas malfeitorias cometidas por Nuno Cardoso a favor do FC Porto e do Estádio do Dragão (razão invocada para a cruzada de Rio) um simples fait-divers administrativo. A ver vamos.

Mas a razão final que aconselha ao silêncio do presidente da câmara do Porto, sobretudo com eleições legislativas e autárquicas à porta, é a comparação daquilo que cada um fez, nestes três últimos anos, desde que Rui Rio chegou aos Paços do Concelho.

Que eu tenha visto (e tenho visto com atenção), nada de substancial mudou no Porto para melhor sob a presidência de Rui Rio. Pelo contrário, em muitos aspectos concretos só tenho visto a cidade piorar e tudo o que de bom foi feito é ainda obra de Fernando Gomes e, em menor parte, de Nuno Cardoso. Basta, aliás, lançar um olhar para o lado de lá do rio para perceber o quanto Gaia foi mudando para melhor, enquanto do lado do Rio a única coisa que se vê, à vista desarmada, é mais e mais urbanizações, pior trânsito e uma cidade que parece estagnada e resignada à falta de ideias e de projectos.

E o que fez, comparativamente, o adversário de Rui Rio nestes três anos?

Fez apenas isto: foi duas vezes campeão nacional e vencedor da Taça de Portugal e Supertaça, conquistou a Taça UEFA, foi campeão da Europa e campeão do Mundo, levando o nome do clube e o da cidade aos quatro cantos do planeta, é campeão nacional em título de futebol, hóquei, andebol, basquetebol e natação e mantém centenas de atletas em actividade, todos os dias e em vários pontos da cidade e de Gaia.

Mais: demoliu um estádio velho e construiu um novo, que é por muitos considerado o estádio mais bonito do Mundo e é hoje um ex-líbris da cidade e uma referência da arquitectura portuguesa contemporânea, e, apesar da tenaz oposição do presidente da câmara em exercício, conseguiu acabá-lo a tempo de servir de abertura ao Campeonato Europeu de futebol.

Para além disso, o Estádio do Dragão é o único caso, entre todos os estádios construídos para o Euro- 2004, que não apenas não prejudicou a cidade como contribuiu decisivamente para a reabilitação e requalificação de toda a zona envolvente, criando uma nova centralidade periférica na cidade, pensada e planeada como raras vezes o são as urbanizações novas.

Por ironia do destino, a obra tão atacada por Rui Rio, alvo de todas as suas suspeitas e obstruções, é a única que, no decorrer do seu mandato, ficará a assinalar um momento de visão, planeamento integrado e qualidade arquitectónica na cidade do Porto. E não só não foi feita por ele mas contra ele.

A verdade remanescente é esta:

-Rui Rio faz quanto pode para que notem que despreza o FC Porto;
-o FC Porto não precisa de fazer nada para desprezar Rui Rio.
-O clube fez obra, Rio não fez nada.
-O clube, que tirou o nome da cidade, prestigiou-o e levou-o ao Mundo inteiro.
-E a Rui Rio, se alguém o conhece, é tão-somente por ser o autarca que odeia o clube que prestigia e representa a cidade que ele chefia administrativamente.

Estas reflexões ocorrem-me no momento em que alguns, como o presidente do Sporting, clamam abertamente pela ingerência do poder político no futebol.

Ocorre-me pensar o que teria conseguido o FC Porto, nestes últimos três anos, se tem sido mandado a partir do governo ou da câmara do Porto. Se tivesse apostado tudo na participação em sessões partidárias do PSD, em entrevistas pedidas aos ministros ou em favores esperados da câmara.

Não tenho dúvidas quanto à resposta: seguramente, não teria sido campeão nacional e muito menos campeão europeu e mundial. E não teria acabado a tempo o Estádio do Dragão ou, se o tivesse feito, teria gasto três vezes mais do que o orçamentado— como sucedeu com o estádio de Braga e todos aqueles que foram pagos, não pelos clubes, mas pelos contribuintes. É isso que deve matar de inveja o número 2 do partido.