terça-feira, fevereiro 03, 2004

Miguel Sousa Tavares: Magnifico

O incendiário, o artista, o daltónico e o cavalheiro

Para que não haja lugar a mal-entendidos, começo por dizer que considero justo o resultado do Sporting-F.C. Porto. Muito embora se me tenha tornado evidente que o Sporting não conseguiria marcar que não de penalty e não conseguiria evitar a derrota sem a decisiva ajuda do árbitro, a verdade é que os portistas já contavam com isso. Em Alvalade, desde há muitos anos para cá, o F.C. Porto enfrenta sempre o Sporting e a arbitragem. Em Alvalade, de resto, é raro assistir-se a uma arbitragem que não seja descaradamente caseira, ver o adversário terminar com onze jogadores ou deixar de ser punido com um penalty inexistente. A pressão sobre os árbitros, antes e durante os jogos, aliada ao choradinho de que ainda são prejudicados, é hoje um factor decisivo na competitividade do Sporting. Em dois jogos de título consecutivos, o Sporting beneficiou de quatro penalties, dois dos quais, pelo menos, falsos como Judas e decisivos. Mas, como disse, com isso já o Porto contava e cabia-lhe, mesmo assim, lutar pela vitória, o que manifestamente não fez.

O resultado é, pois, justo, mas a história do jogo e do resultado fica indelevelmente ligada a quatro personagens: o incendiário, o artista, o daltónico e o cavalheiro.

O INCENDIÁRIO é, obviamente, o presidente do Sporting. Não foi preciso esperar nem quarenta e oito horas depois do enterro do Fehér para que todas aquelas bonitas palavras sobre solidariedade e paz no futebol tombassem com estrondo, quando Dias da Cunha abriu a boca e, como de costume, despejou ódio e irresponsabilidade. Pode sempre adoptar-se em relação a ele a atitude que se vem instalando de o tomar como inimputável, a quem basta estenderem um microfone para ele se passar de todo. Mas, apesar de tudo, desta vez, o seu comportamento excedeu os limites do antidesportivo, do insulto e da provocação e só não há mortos e feridos a
lamentar do incêndio que ele quis atear porque os adeptos mostraram bem mais categoria para estar no futebol do que o presidente do Sporting. Notável o descaramento com que ele enfrentou o problema criado com a atitude antidesportiva de limitar, contra a lei, a venda de bilhetes a adeptos do F.C. Porto (e, afinal, estavam dez mil lugares por preencher no estádio...), dizendo que tudo se resumia a uma multa que o Sporting pagaria «sem problemas». Elucidativa das suas boas maneiras a forma como, tendo visto contrariada pelo MAI a tentativa de separar os adeptos portistas uns dos outros, de modo a que o seu apoio não se sentisse, e mesmo pondo em risco a
sua segurança, ele reagiu acusando as autoridades de «terem baixado as calças» às ameaças portistas (respondeu-lhe e muito bem o Comando-Geral da PSP, dizendo que não estavam habituados a discutir «a esse nível»).
Irresponsável a leviandade de incitar os ânimos e os ódios, quarenta e oito horas antes do jogo, chamando criminoso a Pinto da Costa, novos vândalos aos adeptos portistas e declarando que, se os houvesse no mercado, mandaria rodear o estádio de chaimites para receber os do Porto. Forte da coragem de saber que em Alvalade nada arriscava e fortalecido pelo abraço recebido na Luz, Dias da Cunha achou-se com a retaguarda suficientemente protegida para insultar tudo e todos, dentro do novo clima de desportivismo, transparência e apaziguamento de que se proclama arauto. Mas é certo e sabido que da próxima vez que o Sporting for às Antas, ele se vai quedar por um hotel no Porto, a ver o jogo pela televisão, declarando que não há ambiente para um
senhor como ele ir ao Estádio.

O ARTISTA, foi, claro, Liedson. Pessoalmente, acho-o um grande
jogador e um perigo à solta dentro da área, mas não sabia que, tal como o
seu colega Silva, já tinha conseguido, em tão pouco tempo, assimilar as
regras de escola de teatro da Academia de Alcochete e aprimorado o estilo de
penalties à João Pinto. O primeiro penalty que sacou sábado passado é um
clássico dentro do género: é só preciso chegar à bola primeiro que o
guarda-redes, depois adianta-se a bola para onde não se consegue nem se
pretende ir buscá-la, trava-se a corrida de modo a que uma perna «de
arrasto» vá bater nas pernas do guarda-redes, que as não pode fazer
desaparecer por magia, e pronto... é penalty. Do segundo penalty nem vale a
pena falar, bem como das simulações de faltas sofridas e da forma inebriante
como ele se atirava para o chão a rebolar sem parar, como se tivesse sido
atingido por um cortador de relva. Agora, na memória de nós todos (excepto,
claro, na da Comissão Disciplinar da Liga), há-de ficar aquela cena
anedótica em que ele, reagindo ao retardador, se atira para o chão a rebolar
e a gritar dores pungentes, quando o Jorge Costa lhe encostou dois dedos à
orelha. Juro que, no género tragicómico, nunca tinha visto igual. Melhor
mesmo, só o inevitável Dias da Cunha, a declarar no final que era uma pena
que Lucílio Baptista não tivesse visto a agressão do Jorge Costa. Ele ver
viu, viu exactamente o que se passou, mas até achou que um teatro daqueles
até merecia aplausos. Beneficiando da compreensão do árbitro, o artista
prosseguiria a sua performance ao longo do jogo e viria a revelar-se
decisivo para o seu desfecho.

O DALTÓNICO é precisamente o grande internacional Lucílio
Baptista, que esteve, uma vez mais, igual a si mesmo, isto é, sem pinga de
isenção ou categoria. Para os artistas do Sporting era toda a compreensão do
mundo, para os do F.C. Porto era dedo em riste, cara de mau, tom de ameaça,
amarelos por dá cá aquela palha. Faltas contra o F.C. Porto eram todas e
mais algumas, até assinaladas voltando atrás depois de ter dado a lei da
vantagem. Contra o Sporting, foi uma inexplicável dificuldade em ver faltas
evidentes: o Deco rasteirado à entrada da área, depois do 0-1, o Maciel
agarrado pelo Rui Jorge quando se ia a isolar, o Beto a defender em voo e
com o punho no limite exterior da área, o Pedro Mendes atropelado por dois
jogadores do Sporting dentro da área do Porto, permitindo uma jogada de
muito perigo do Sporting, etc, etc. Penalties, está tudo dito: viu o
primeiro, todavia bem menos visível que os dois que, no ano passado, no
mesmo jogo, deixou passar contra o Sporting; quanto ao segundo, conseguiu a
proeza de, a trinta metros de distância e encoberto, ver uma pretensa falta
cometida pelo Paulo Ferreira sobre o Liedson, quando os dois corriam de
costas para o árbitro e lado a lado. Ainda e decisiva foi a sua ordem ao Rui
Jorge para lançar a bola, na jogada do segundo penalty e quando estava a ver
que na lateral ainda estavam o Maniche e o Jorge Costa junto do João Pinto.
Se Rui Jorge diz a verdade - e eu acredito que sim - o Mourinho cometeu uma
injustiça para com ele. O responsável por aquele acto profundamente
antidesportivo de recomeçar o jogo tirando vantagem de dois adversários se
encontrarem de fora a assistir um colega magoado, foi do árbitro e não do
defesa sportinguista. O que eu sei é que as imagens mostram o Jorge Costa a
pedir ao árbitro autorização para entrar em campo, já depois do Rui Jorge
ter lançado a bola, e sei que, não por acaso, foi exactamente pela zona do
Jorge Costa e aproveitando a sua ausência, que o Liedson entrou para se
atirar para o chão, ganhar um penalty e dois pontos. Foi feio, muito feio,
ou, como disse o inevitável Dias da Cunha, uma «arbitragem corajosa» e
«contra o sistema». É verdade que, como acrescentaram muitos sportinguistas,
Fernando Santos incluído, faltou ainda expulsar o Vítor Baía no lance do
primeiro penalty: os quatro ex-árbitros que funcionam como analistas da
arbitragem em «O Jogo», explicavam na edição de domingo e unanimemente
porque o Baía jamais poderia ter sido expulso e porque o segundo penalty foi
inventado. Remeto para essa leitura os porventura de boa-fé.

O CAVALHEIRO é José Eduardo Bettencourt, uma pessoa por quem eu,
à distância, sempre tive, e mantenho, consideração e respeito. Quando o vi,
em tom solene e pungente, aparecer na sala de Imprensa exibindo uma camisola
rasgada do Rui Jorge, contando que ele a quis trocar pela do Vítor Baía e
que José Mourinho, perante a concordância de Pinto da Costa, se opôs,
rasgando a camisola e declarando que queria ver o Rui Jorge «morrer em
campo», fiquei estarrecido. Imaginei a cena e não conseguia acreditar que o
José Mourinho, ou quem quer que fosse, por mais nervoso e exaltado que
estivesse, tivesse feito e dito coisa daquelas. Mas como era o José Eduardo
Bettencourt a jurá-lo pelo seu cavalheirismo, pelo seu bom-nome e maneira
«diferente» de estar no futebol, confesso que fiquei baralhado. Mas, afinal,
e como relataram os jornais dos dias seguintes, tudo não passou de verdade.
«Por ouvir dizer», visto que José Eduardo Bettencourt, ao contrário do que
deixou querer, não assistiu a nada. Segundo o relato do roupeiro do
Sporting, terá acontecido que, já na sua cabine (e porque não no campo?) o
Rui Jorge terá querido trocar de camisola com Baía. Mandou-a pelo roupeiro
do Sporting, o qual a entregou ao do F.C. Porto, o qual regressou depois com
ela rasgada e o recado que José Mourinho terá enviado, acrescentando que
tinha a concordância de Pinto da Costa - ambos, pelos vistos, recolhidos à
cabine dos jogadores. Então, o senhor Manuel levou de volta a camisola e a
mensagem invocadamente recebidas do senhor Moreno, entregando-as a Rui
Jorge, o qual as passou a Fernando Santos, o qual as passou a Bettencourt, o
qual, indignado, exibiu camisola e história na conferência de Imprensa. E
agora, pergunto, como irá o chefe do departamento de futebol do Sporting
fazer prova em tribunal, recorrendo a testemunho em quinta mão, da gravidade
das acusações que lançou sobre José Mourinho?
E o tom em que o fez? Aquela insuportável postura de «somos um
clube diferente, fundado por um visconde, verdadeiro clube de cavalheiros e
desportistas puros, integramos a elite do país, ministros, generais,
presidentes, titulares, não nos confundimos nem misturamos nem com o povo
benfiquista nem com esses marginais selvagens do Porto, essa gente que tem
de comprar o que a nós é dado - os favores da arbitragem?». Pois é, mas como
pode um clube de gente gentlemen e fair play ter um presidente que fala a um
nível que até a polícia recusa discutir ou ter um speaker de serviço no
estádio que, quando a claque do Porto canta, proclama aos microfones que
«vozes de burro não chegam ao céu»? Serão privilégios de berço?